Liberdade, liberdade...



Ironia é coisa difícil. Em literatura, então, muito difícil. Nestes inusitados tempos do politicamente correto, mais ainda.
Não pode-se falar "veado", por exemplo, sem correr o risco de ser processado. Machão também não é bem visto. Chamar um negro de negro, nem pensar. Um amarelo de china, dá briga na certa. Se for fazer alguma referência a um gordo, faça de todas as formas, exceto algo como "gordo", ou a um muito magro, nem cogite chamá-lo de seco. E eu ainda sou do tempo de falar "quatro olhos" para quem usava óculos, imaginem a heresia. Por sinal, se ouvir alguém dizer "sou do tempo de" não o chame de velho, por mais que seja. Se for careca (aeroporto de mosquito), o melhor é nenhuma referência ao problema capilar, se é que isso seja um problema. Mulher, se estiver na direção, não pode ser acusada de "barbeirices". Por sinal, se ela for gostosa, nem morto para fazer alguma menção. Os baixos (surfistas de microondas) e os altos (os gerivás) não podem ter nenhuma relação com suas estaturas. Feios, não imagine nada, por favor, e os bonitos também não, afinal, se for um homem bonito parecerá com mulher e, caso seja mulher, fatalmente será uma exibida.
Tirando esses tipos aí de cima, excetuando, também, as minorias - não é legal também referir-se às minorias como minorias, - índios, albinos, indivíduos que falam catalão, honestos, pessoas que não gozam o jeito do Inácio falar; e algumas maiorias, como as loiras, burros e cidadãos que gostam do Inácio, além de qualquer comentário religioso, político ou contra a milicada, o resto pode-se falar à vontade, sem medo de ameaças ou processos, sem medo de ser feliz.
Então, aproveitando essa liberdade toda, vou falar de algo verdadeiramente fascinante: botão de elevador.
Dias atrás entrei em um desses prédios modernos, repleto de vidros escuros como se usasse óculos, por um corredor largo todo em mármore, quando deparei com o que seguramente seria o botão de elevador mais bonito que havia visto na vida. Cheguei perto dele, redondinho, nem grande, nem pequeno, com uma auréola azul/avermelhada em volta, de metal reluzente por dentro, lindo, e parei. Não porque o elevador não estava ali, mas para apreciar tamanha beleza.
Havia ao seu redor, quatro pessoas (nem altas, nem baixas, nem gordas, nem magras, nem pretas, nem brancas, nem roxas, nem feias, nem... ) também paradas, olhando para o nada. Estiquei a mão para colocar meu dedo (pensei em nunca mais lavá-lo) naquela formosura da criação humana, mas recuei. O que as outras pessoas pensariam? Que eu achava que elas não sabiam apertar um botão de elevador? Por outro lado, ficaria privado desse prazer? E se a aura angelical ficasse azul/avermelhada ainda mais incandescente? Eu tenho o direito de privar a mim mesmo de tamanha catarse? Fiquei ali, com minhas interrogações quando uma mulher, uma mulher... Como direi? Não! Lembrei agora. Isso foi num filme que vi. Uma mulher loira, linda, maravilhosa, com pernas feito colunas góticas, imponentes, torneadas, sustentando nas alturas uma homenagem divina ao belo, ao supremo, que passa desenvolta ao lado de um rapaz parado com a mão erguida e, com um dedo longo de unha enorme e bem recortada, pintada de cor vermelha-sangue-vivo, aperta o botão de elevador que responde ficando todo luminoso, assanhado. Isso foi no filme. A mulher da minha história era normal, nem feia, nem bonita, nem preta, nem branca, nem... que também apertou o botão. E eu fiquei ali, parado, enquanto um som lindo, algo como "bléin-blon", invadiu meus ouvidos e a mágica da ciência fez duas portas abrirem-se sozinhas na minha frente.
Não quero exagerar, mas eu quase gozei de tão contente. Se eu tivesse apertado o botão, entraria em estado de graça, certamente atingiria o nirvana. Que momento! Que tarde! Que vida!
E sabem a razão de eu estar realmente feliz? É poder contar tudo isso, essa aventura épica sem nenhum constrangimento, nenhum receio.
A moça do filme puxou o rapaz pelo braço e fez sexo com ele ali mesmo, no elevador, entre o segundo e o sétimo andar, com os quatro normais olhando. Não, essa foi a minha moça. A do filme subiu sozinha com os outros, e o rapaz ficou parado pensando em cinema. E nas unhas. Vermelho sangue. Sangue vivo, hemorrágico.
Adoro aventuras!
Adoro a liberdade de expressão!
Adoro ironias!
(Nem tanto).


Obs. Este texto é uma singela homenagem ao Estadão.


4 comentários:

Silvares disse...

Eu sabia que isso existia algures... o elevador directo para o último andar do Paraíso.

Ricardo Valente disse...

Dá-lhe, Beto! Excelente!

Letícia Palmeira disse...

Singela? Onde?

E eu adorei a construção "prédio de óculos escuros".

E você fez algo que geralmente não faz. Usou de repetição. E ficou bom. Muito bom mesmo.

Beijos.

the dear Zé disse...

Também é bem, e aprovado, falar do tempo - meteorológico é claro, de jardinagem e ponto cruz. Temas fascinantes para desenvolver em plena liberdade de expressão. Ui, já sinto o frisson a subir pela coluna...

Ciao