Chuva no Rio e gente estúpida



Se você está caminhando e vê uma formiga, desvia o pé para pisar na tal formiga ou desvia para salvá-la?
Pergunto sem nenhuma segunda intenção e sem levar em conta particularidades. Um budista, por exemplo, certamente protegeria o inseto - até porque poderia ser ele próprio lá embaixo carregando um pedaço de folha enorme - enquanto um menino arteiro de nove anos condenaria sumariamente o bicho à morte. Falo assim, em algo casual, excetuando os extremos. Budistas e crianças, portanto, não prossigam à leitura. Falo de pessoas como eu me imagino (e certamente me engano), enfim, pessoas normais.
Voltemos à pergunta, feita de outra forma: se uma pessoa está caminhando e vê uma formiga, ela desvia o pé para matar ou para salvar? Observe que a diferença entre uma e outra está no sujeito. Na primeira, pergunto diretamente a você, qual seria sua reação. Na segunda, pergunto o que você acha que outra pessoa faria.
Essa possivelmente seja a forma mais estúpida que eu encontrei para afirmar o óbvio: a coisa não está fácil. Entenda-se por "coisa" a situação em geral. Caso as respostas - independente de qual - para a maioria das pessoas fossem a mesma para as duas perguntas, metade dos nossos (quando falo em "nossos" falo da humanidade) percalços estariam resolvidos. 
O problema é a diferença entre o que fazemos, dizemos fazer e pensamos ter feito. Além, é claro, do que projetamos para o outro. Simples: eu não pisaria na formiga. Minha resposta seria desviar o pé para salvá-la. Mas, claro, o outro a mataria sem dó e muito menos necessidade. Eu seria o mocinho da história; ele, o bandido. O estranho nisso tudo é que se ele respondesse as mesmas perguntas, certamente aconteceria a inversão. (Somos aquilo que imaginamos ser e o contrário de como nos veem?) 
Resumindo de maneira definitiva: ruim e errados são os outros.
Um exemplo magnífico disso, aconteceu com o senhor excelentíssimo governador do lindíssimo estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. No auge de toda sua sapiência, depois das chuvas e de mais de uma centena de mortes, ele afirmou que, em parte, a culpa dos óbitos é da própria população que mora em áreas de risco. Claro, eles estão lá porque querem. Existe lugar na Vieira Souto para todos, mas esse povo insiste em morar em perigosos barrancos. Não foram as dezenas de anos de absoluta pobreza, de governantes autoritários e corruptos, de falta de investimento em educação e (óbvio) habitação, além de tantas outras deficiências que causaram isso. Eles estão lá por opção, por gosto. E mais: garanto que estão morrendo somente para prejudicar o governador. Essa gente é capaz de tudo.

Acho que os anos vão nos roubando a paciência. Tenho cada vez menos. Fosse a singela formiguinha abaixo do meu sapato um sujeito como esse, ela seria esmagada impiedosamente. Torço para que os budistas tenham razão. Assim, talvez algum dia, um menino de nove anos possa me dar esse prazer.



11 comentários:

Onofre Dias disse...

Excelente. Meus sinceros parabéns.

Cida disse...

Os anos nos roubam a paciência. Os governantes acham que nos roubam a capacidade de pensar.

Gostei demais!

Silvares disse...

Diz o povo que a estupidez não tem limites. Eu sei que o povo nem sempre tem razão mas acerta muitas vezes.

Sueli Maia (Mai) disse...

Perfeito, Beto! E sem ser panfletária, vale lembrar que a distribuição de verbas para prevenção de catástrofes vem sendo apurada pelo TCU. Há um lixo que subjaz nisto tudo e que resulta nos pisões sobre formigas.
...
parafraseando a onomatopéia de um amigo: plac,plac,plac...

bjo

the dear Zé disse...

O povinho é mesmo do contra, só para contrariar!
E agora, onde vão alojar os desalojados? provavelmente num outro formigueiro, não?

Abraço

Leandro Noronha da Fonseca disse...

eu pisaria nas formigas. sem dó nem piedade

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

pisar em uma formiga é o fim, mas se pisa em gente quanto mais em uma formiga

Wilson Torres Nanini disse...

Salvar formiguinhas meu caro, certamente nos fará mais e mais humanos. Agora, devemos refletir sobre o que levou cada uma das pessoas mortas por bala perdida a não ter desviado o corpo no instante em que o projétil tava passando.

Ótimo texto!!!

Estarei por aqui!

Abraços!

Letícia Palmeira disse...

Estou sem paciência. Até a Fátima Bernardes saiu do estúdio e foi pra lama. Isso me cansa. E os milhões gastos e mais gente morta. Parece reprise. E eu salvaria a formiga.

Daisy Serena disse...

É MUITO mais cômodo jogar a sujeira para o tapete do mais fraco, do que aspirar a própria sujeira.
E assim, vamos todos desmoronando[ de um jeito ou de outro].

Sylvia Araujo disse...

Texto incrível, leve apesar do tema paulada.
A culpa é da população, claro. E eu mataria a formiga, claro. As formigas, naquele entra e sai insuportável, ajudam a deixar a terra dos morros mais instável, o que causa desmoronamentos e 200 mortes por qualquer chuvinha. (deixando claro que não isento de culpa a população marota, que não quer morar na Vieira Souto, só pra ter vista aérea da Baía)