Praga e a civilização



Logo que vim morar em Porto Alegre, há algumas décadas atrás, andava muito de ônibus em plena madrugada. Lembro que seguidamente, ao chegar na roleta, o cobrador (ou trocador como é chamado em lugares mais ao norte), propunha de maneira incisiva e automatizada:
- Pula e deixa a metade da passagem.
Era uma maneira simples e desonesta dele ganhar mais e o passageiro pagar menos. Funcionava em algumas linhas como fosse algo já instituído. Talvez o adicional noturno dos funcionários. Certa vez, afirmei que não queria pular a roleta e a resposta veio imediatamente:
- Sem problemas. Sai pela porta da frente. - (Naquela época, a porta de entrada)
O que eu realmente queria, era não tornar a minha desonestidade momentânea em um hábito. Claro que os trocados que eu economizava ajudavam (e muito), mas aquilo me incomodava bastante. Tanto que resolvi entrar em contato com a empresa de ônibus e, para minha surpresa, depois de agradecer a ligação e afirmar que investigariam, o atendente contou, em uma espécie de "off", que isso não preocupava muito a diretoria, porque as passagens não pagas entravam na planilha de custos, usada para calcular os aumentos. Ou seja, a empresa recebia por elas. Quem realmente saía perdendo e pagava o prejuízo era o coitado do operário que trabalhava o dia inteiro e ganhava uma miséria. Poucas vezes me senti tão mal na vida. Depois disso, passava rapidamente pela roleta, sem dar chance para que me tornasse cúmplice daqueles roubos.
Concluindo: era a desonestidade institucionalizada, aceita, calculada, admitida.
Pois em Praha, ou Praga, capital da belíssima República Tcheca (ocupa a posição de número 28 no IDH - o Brasil ocupa a 73, logo depois do Irã), em plena Europa Central, o eficiente sistema de transporte funciona da seguinte maneira: o usuário compra seu passe e não apresenta a ninguém ou passa por qualquer roleta. Exemplificando: compramos um passe para três dias, que servia tanto para o metrô quanto para os ônibus ou os trens elétricos, bondes, de superfície. Na primeira vez que usamos, o tíquete foi introduzido em um leitor e a data e a hora impressa. Pronto. A partir daquele momento, tivemos livre acesso a qualquer unidade do sistema sem passar por nenhum controle. O único cuidado foi guardar a passagem, que pode ser solicitada por algum fiscal. O fantástico nisso tudo é que qualquer pessoa pode simplesmente entrar e sair sem pagar. Em todos os dias que estivemos em Praha, vimos um único fiscal, o que certamente facilitaria aos usuários com más intenções.
E sabe qual resultado disso tudo? É ainda mais espantoso, mas o sistema funciona. Veículos limpos, rápidos, eficientes, pontuais, tudo porque certamente as passagens são pagas, mesmo que não sejam cobradas.
Quando vi aquilo, não tive como escapar da lembrança da roleta sendo pulada por mim anos atrás. Não tive como reconhecer o quanto atrasados estamos, o quão longe de sermos civilizados e educados, os anos-luz que estamos distantes da honestidade. Somos desonestos porque faz parte da nossa cultura, porque o prejuízo causado pela falcatrua está embutido nos preços que pagamos. Somos desonestos porque nossos roubos estão na planilha de custos.
Não bastasse essa aula de desenvolvimento e civilidade, Praga é simplesmente fantástica,  linda, imponente, antiga e bem cuidada. Um lugar onde um pulador de roletas, que parou somente depois de descobrir de quem era o prejuízo, não deveria sequer ter o direito de por o pé, exceto se o arrependimento pelo deslize tenha sido sincero e a lição aprendida.
Meu caso, ainda bem.
Então - e se principalmente não pularam dentro de coletivos no passado ou se regeneraram - caso tenham oportunidade, visitem Praga. Vale qualquer esforço.

Um comentário:

Onofre Dias disse...

Muito legal. Eu nunca pulei roletas...