A sabedoria, o ovo cozido e a Bere


Nascemos para ser felizes, mas a sociedade nos quer bons. E trabalha para isso. E, de certa forma, esse forjamento deliberado, às vezes, traz danos bem maiores que os benefícios. A questão é bastante simples: para sermos felizes, não necessariamente devemos ser bons. Talvez o contrário seja mais razoável. Felicidade é algo tão abstrato e "flutuante", que suas necessidades podem ser a infelicidade alheia. Pronto, eis o conflito! Eis onde entram nossas leis mais civilizadas, tirando de cena "a do mais forte". Pouca coisa, é verdade, mas certamente menos medievais do que aquelas que a natureza nos fornece. Entram também nossos conhecimentos. Nossa tecnologia. Toda a gama de séculos de trabalho, de estudo e de tentativas e erros até compreendermos que nosso polegar opositor serve para bem mais coisas que fazer o sinal de "legal".

Então, a mesma sociedade que nos desvia do curso natural, que seria um caminho quase direto em direção ao "ser feliz", causando todo tipo de transtorno para nos transformar em "bons", evitando, claro, alguns barbarismos, traz também tudo o que inventamos para voltarmos a ser felizes, com objetos de toda sorte, desde a mais prosaica mãozinha de madeira para coçar as costas até o mais complexo e forte dos analgésicos, isso sem falar naquilo que nos torna alienados, sonhadores, nefelibatas, enfim, felicidade de proveta.
Conhecimento! Esse é o segredo individual para trazer-nos de volta ao curso primário, superando os desvios que a coletividade nos impôs em nome da tão desejada civilidade.
Levamos séculos para termos as compensações necessários e sermos, eu diria sem medo, "quase" felizes, como somos hoje. Morremos mais velhos e mais saudáveis, matamos praticamente só por dinheiro e deuses, temos momentos de lazer e algumas centenas de direitos. Não queimamos mulheres em fogueiras e a venda de lugares ao lado de deus é bem disfarçado. Temos um poder magnífico de comunicação e um controle satisfatório dos recursos naturais. Acreditem, isso tudo é bastante interessante e desenvolvido. Já fomos bem piores.
Também corrobora com o retorno à felicidade, o poder do aprendizado. Somos rápidos. Impávidos. Cito a mim mesmo como exemplo. Levei quase cinco décadas mas aprendi, semana passada, que o ovo cozido, aquele mesmo da galinha, também chamado de ovo quente ou duro, tem um lugar certo para ser quebrado. Isso mesmo. Pode parecer estranho, mas eles têm dois lados: um deles mais achatados e outro mais pontudo, que é o correto para ser violentamente agredido por uma colherzinha, até aparecer a clara branca e cozida. Se o incauto fizer isso no lado errado, encontrará pela frente uma pele horrorosa que, por certo, estragará a refeição. Se quebrarem em outra parte qualquer, prefiro nem imaginar o que pode acontecer.
Claro, preciso admitir, essa sabedoria e tecnologia prática foi-me ensinada por uma mulher, excelente escritora e profunda conhecedora da literatura, dona de um poder de compreensão que supera as melhores expectativas, o que me lembra de mais um elemento básico para nossa felicidade: amor.
Afinal, como não amar as mulheres e seus encantos?

PS. Há uma grande chance de eu ter entendido errado o lado certo de quebrar o ovo.

4 comentários:

Onofre disse...

Canales, e tu, um verdadeiro chef, não sabia disso?

Letícia Palmeira disse...

Eu não sei quebrar ovos. Será que também não sei ser feliz?

Como sempre e de bom costume, adorei seu texto. É sempre assim. Você é um dos únicos que ainda consigo ler.

E já fomos bem piores.
Isto me faz ficar quase satisfeita.

Silvares disse...

Toma atenção ao colesterol!

Mai disse...

Beto,

um dos melhores textos que já li por aqui.

E sim, não somos bonzinhos.

beijos