O cinema e a vida


Quatro filhos e um emprego de doméstica. Quatro aflições e uma mãe. Quatro futuros incertos e uma certeza: basta o presente. Linha de Passe é genial. Novamente não vou falar sobre cinema, somente destacar que o longa é muito bem dirigido, com atuações esmeradas e emocionantes (merecidamente o prêmio de melhor atriz em Cannes foi dado a Sandra Corveleoni), e uma fotografia meticulosamente estudada. Há uma cena que passa batida, quando um pseudo-bandido grita para a amedrontada vítima: "Me olha!" Algo como "Você está me vendo? Me olha". Isso só já valeu o caro ingresso.
É mais ou menos assim que acontece. Vou separar aqui (um Apartheid do bem, somente para uma análise - será mesmo isso?) a sociedade: a primeira parte, formada pelos dirigentes, profissionais liberais, burocratas governamentais, empresários, enfim, aqueles que vão a restaurantes, abastecem seus carros, contratam motoqueiros, lêem e escrevem blogs, essas coisas. A segunda parte, formada por empregados, peões, desempregados, sub-empregados, aqueles que abastecem os carros, trazem a bebida, levam encomendas, não sabem o que é um blog e ficam enfeiando ainda mais as esquinas. Pois, até para facilitar e por estar aqui escrevendo, vou me incluir, e também a vocês, no primeiro bloco. Enfim, nós enxergamos esses outros? Vemos o garçom solícito por traz da bandeja? O motoqueiro mesmo sem capacete? O frentista do posto sem perguntar "água e óleo"? Nem falo dos pedintes, dos drogados, dos excluídos. Mas sim de quem nos serve e ajuda. Que cara tem esse povo? O que anseiam? Não sei! Não olhamos pra eles e nem eles pra nós. É como fossêmos vizinhos sem conversar. Nos vemos todos os dias e não nos enxergamos nunca. Eles não tem rosto, expressão, nada. Talvez por isso pensamos que não tenham necessidades, planos ou vontades. Talvez por isso imaginamos que não tenham futuro e, infelizmente, talvez não tenham mesmo. E a culpa é nossa. Aqui não cabe talvez algum: é exclusivamente nossa. 
O maior problema é quando eles nos virem, com nossos carros abastecendo em um posto onde a filha do frentista foi estuprada e o delegado nada fez; ou comendo uma truta enquanto a família do garçom passa fome ou ainda quando um motoqueiro trouxer nosso Prozac enquanto sua filha não tem um remédio qualquer para pneumonia. Some-se isso aos outros, os à margem de tudo, que além de não ver também não gostamos, e sabe-se lá no que vai dar. Às vezes tenho um certo medo desta cegueira social. Gostaria que todos nós nos víssemos.
Enfim, Linha de Passe é imperdível e trata de diversos assuntos, com um pouquinho - pouquinho mesmo - de destaque a esse problema. Os quatro filhos e a mãe fazem parte desta massa sem rosto e assim vai ser até o fim. No filme e fora dele. 
A propósito, esta parte da sociedade só vai poder ver o longa quando chegar aos camelódromos, em cópia pirata, vendida a R$ 2,00. Pirataria é crime. Não ver o filme também. Sermos todos cegos ainda mais.



7 comentários:

Felipe Lima disse...

Dizer o quê?

Mariana Baierle Soares disse...

Adorei as tuas considerações. somos todos - infelizmente - responsáveis por essa "cegueira social". Realmente, passamos por mendigos nas ruas e não os enxergamos. Falamos com o frentista do posto e não vemos realmente quem é aquela pessoa.
Adorei o comentário. Estou louca para ver o filme. Adorei o blog também! Grande abraço e até mais

Robson Schneider disse...

Beto esse texto me deixou triste, sério... e lacrimejante confesso.
Hoje por coincidência fui a um enterro de uma pessoa da segunda lista - na verdade não me encaixei em nenhuma das duas citadas,aliás minto, escrevo um blog - fiquei perplexo e me afastei ao ver a diferença dos funerais...Esses ultimo são enterrados como cachorros, a familia tem que chorar
rápido, pois o seu defunto some debaixo de pazadas grosseiras num segundo...e tinha uma coroa de flores que destoava daquele contexto, parecia enviada ao enterro errado, penso que um burocrata ou escritor de blogs, ficou com menos uma ostensiva coroa em sua morte elitista.

Beto Canales disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Beto Canales disse...

Estranho mesmo Robson, até na morte nos "apartamos".

Robson Schneider disse...

Mas sabe ese afastamento foi proposital, cosciente... fiquei apartado com minhas elaborações e olhando a tristeza de fora, as vezes precisamos olha-la friamente
pra perceber melhor seus traços.
Abraço e uma duvida? A "manhã com Beto Guedes" ficou no ar...
Pra você é boa ou ruim?! bem eu gosto muito.

Beto Canales disse...

é ótima.