Época de ensaio

Quando eles vierem, ou me chamarem, se eu ainda estiver vendo algo, vou abaixar a cabeça e olhar para o chão. Nunca encarar esta gente é vital à sobrevivência. Existem outras regras fundamentais como, sempre que possível, acumular algum alimento não perecível - pode ser até barras de cereal, para as horas mais difíceis, principalmente quando bate a angústia. Nunca retrucar, ou discutir. Tem-se sempre que concordar, mas de maneira firme. O melhor é não demonstrar medo ou algo que pareça medo. Nem ódio ou simpatia. O melhor é não demonstrar nenhum tipo de sentimento e ficar o mais quieto possível. Não demonstrar qualquer mania também é essencial. Caso tenha alguma, melhor esconder. Mesma coisa com as fraquezas. Da vida particular, quanto menos souberem, menos pior. Nunca conte sobre bens ou posses. Luxos, caso tenha algum, esconda a qualquer custo. Não delate amigos ou conhecidos. Não abra a boca sobre contas bancárias e, se for no exterior então, perca a língua se for preciso, mas não fale. Esta demora em acontecer algo deve ser parte do processo. Quase se vai à loucura e nada novo. Sempre os mesmos sons e os movimentos repetidos. Isso vai minando a resistência, aumentando a ansiedade, vai me enfraquecendo. Tenho que permanecer ereto, viril e forte. Tenho que treinar a respiração. Não posso ofegar, nem transpirar, nem olhar furtivo para os lados. Eles não podem ver meus olhos. Tenho que parecer - além de ser - humilde. Somente ser, caso eles não percebam, de nada adianta. Sei que estou nas mãos deles. Que eles podem terminar com a minha vida, com o meu sossego. Sei que podem tomar o que levei anos para construir. Mas tenho que mostrar dignidade. Tenho que ter honra e, se tudo der errado, que seja com glória. Aliado à demora, esse lugar frio, impessoal, quase todo de pedra e escuro, é seguramente nocivo à integridade psíquica de qualquer um. Não estou mais resistindo. Tenho medo de enlouquecer, de cometer algum ato insano. - Plimplom - De novo o som. Deixa eu ver: 527- D mesa 36 - F. Sou eu, o 527- D, tenho que ser rápido: a mesa 36 está lá, mas aquela é a G, a minha é F. - Plimpom - Esperem, não posso perder minha vez. Vou logo, deve ser ao lado - às pressas mesmo, quase sem preparo.
- CIC, por favor.
Eu sabia, não trouxe o CIC e não lembro o número. Mas lembro meu nome, 527 - D, não, não é isso, meu nome é Beto Canales.
- Boa tarde. Não trouxe meu CIC e esqueci o número. Mas vocês que me chamaram aqui: dependentes, pagamentos, malha fina, essas coisas, e meu nome é Beto Canales, então...
- Desculpe senhor, sem o CIC não posso ajudá-lo.
Plimplom - 528 - D.
E eu fiquei ali, parado, olhando meu irmão mais velho, o 528, que já chegou com o cartão do CIC em mãos. A experiência vale muito.
Preciso ensaiar mais, muito mais, para enfrentar essa gente.

5 comentários:

Felipe Lima disse...

Não demonstrar medo. Essa é a chave. E olha: às vezes, nem a experiência, amigo.

Boa sorte.

Anônimo disse...

plac, plac, plac

sorte e luz.

Luiz Calcagno disse...

Um ensaio, não? Um ensaio sobre a surdes, sacou? Legal mesmo.

Letícia disse...

Plac, plac, plac de perna de pau e salto alto. =)

É coisa de imposto de renda, banco, burocracia. E eu pensei nos dez mandamentos. Deve ser e Semana Santa.

Bjos, Sr. Editor.

Silvares disse...

Aquele leão parece de uma historinha do Tarzan, desenhado por Russ Manning. É imaginar que somos o Rei da Selva e que, à nossa frente, estão apenas macacões mal encarados que não irão resistir ao nosso grito selvagem. É por o corpo em pé, bater desalmadamente no peito com os punhos cerrados e gritar "Ááááááúáiáááá!!!!". Depois... bom, depois é só dar as boas tardes (ou os bons dias) virar costas e saír, altivo como um verdeiro Rei da Selva.