Crise e coisas mundanas

Não vou exagerar. Até porque já repeti um milhão de vezes para mim mesmo que o exagero não é bem-vindo. Também não vou comparar com aquela piada sem graça em que o cara diz "garçom, meu prato está úmido" e ouve como resposta "essa é sua sopa, senhor". Nada disso. Farei um relato fidedigno.
Fui a um restaurante francês fora da França. (Isso é meio estranho, mas é assim mesmo que falam: francês). Cheguei cedo e me conduziram rapidamente a uma pequena mesa. O restaurante estava vazio, repleto de toalhas absurdamente brancas. Não tinha como ser diferente, no mesmo instante a lembrança dos terríveis comerciais de sabão em pó invadiu minha mente. Cheguei a procurar uma propaganda qualquer, mas, felizmente, não encontrei nada. Sou otimista e então gostei da minha pequena mesa basicamente por dois motivos. Primeiro, que em caso de violentos problemas gastrointestinais eu estava na porta do "toalette"; segundo, porque em caso de incêndio, já estava meio caminho andado pela rota de fuga. Ou seja, pertinho da famosa porta dos fundos. Mesmo tendo gostado, cheguei a chamar o maître (em uma tradução livre, mestre e, mais livre ainda, professor) levantando o dedo (nada mais apropriado), para comentar a respeito. Dois segundos depois, porém, apareceu repentinamente o garçom, com o cardápio que parecia um cartaz dobrado com capa dura. Disfarcei, claro, e comecei a olhar as opções. Olhar mesmo, pois não conseguia entender nada. Escolhi o nome mais extenso. Dava quase duas linhas com uma letra de tamanho normal. Nada poderia ser ruim com aquele nome todo. Apontei com certo descaso e perguntei ao garçom que ainda estava parado ao lado com olhar fixo para a parede:
- Os ingredientes são frescos?
- Oui, monsieur! - Bolas. Ora bolas. Eu queria mesmo é ter uma ideia do que comeria, então, insisti:
- Todos eles?
- Oui, monsieur! - O rapaz não sabia mais nenhuma palavra? Oui, Oui. Eu queria ouvir algo como "claro, acabamos de abrir a latinha de milho" ou "acabou de chegar da queijaria". Não desisti:
- Todos quais? - Aí ele falou. E lindo. Em francês, até a frase "tem um tubarão comendo sua perna" é bonito. Era beicinho para todo lado. Disse o nome dos três ingredientes e, no final, falou o nome do prato. Quase entrei em transe. Era magnífico. Um hino. Fosse a Edith Piaf que tivesse dito, teria virado uma bela música. Consenti com um discreto aceno de cabeça e ele saiu ereto como um poste de concreto. Fiquei me distraindo tentando furar as rendas da toalha branca. Ainda bem que arrumei algo para fazer, afinal, somente uma longa hora depois do pedido chegou a comida. Tive vontade de dizer algo como "podem levar a entrada, senão depois não janto", mas, a verdade nua e cozida, aquilo era o próprio jantar. Vou descrevê-lo: era uma pequena bolinha de arroz, quebrado e feio, misturado com pedaços de alguma semente parecidas com castanha, abaixo de uns galhinhos verde-escuros que lembravam urtigas. Cercando tudo, diversos riscos coloridos de algo tipo uma geléia, formando uma figura abstrata no enorme prato. Comi com os talheres de prata. Terminei, olhei para a toalha já nem tão branca e fui embora curioso, serpenteando entre as mesas agora lotadas.
A caminho de casa, passei ao lado de uma lancheria, dessas com mesinhas de lata na rua, também lotada com dezenas de garrafas vazias sobre as mesas e o samba pegando solto. Quase desci para comer um pastel com muito óleo.
Ao invés disso, fiquei intrigado com duas questões: onde está a crise? Começo a desconfiar que ela não existe. Mais uma mentira do "mundo capitalista" para "dopar" os esfomeados? E a outra é que comida francesa não é inesquecível somente ao paladar. Liguei para o meu cartão e parcelei. Nada grave, ano que vem volto para comer algo que tenha carne. Com vinho. E parcelo em vinte e quatro vezes. Ráá.
C'est lá vie!

6 comentários:

Onofre Dias disse...

Tinha escargot?

Letícia Palmeira disse...

Ces't la vie.

Queria aprender a falar francês só pra assistir Truffaut sem ter que ler as legendas. Aprender também pra entender o que dizem os jornalistas, apresentadores de programas e os atores que vejo aqui em casa no canal por assinatura. Não entendo nada. E ainda pago pra ver coisa que não entendo. Acho mesmo que a crise está em mim. E eu também fico incomodada com propagandas de sabão em pó. A mulher lavando a roupa e nem suada fica. O mundo não combina com nada.

Sueli Maia (Mai) disse...

Desconfio que, na culinária, a sofisticação é anoréxica. O brasileiro não gosta de PF e a cozinha francesa nos serve um PF bordado em arte abstrata.

ADOREI!

(Claro que me acabei de rir.)

beijo e bom final de semana

Cristiano Contreiras disse...

Beto, estive conhecendo e absorvendo aqui o teor criativo, sério e inteligente do seu blog.

Parabéns!

Sou também exímio apaixonado pela Sétima Arte e gostei de conhecer teu espaço. Estou seguindo e te linkarei ao meu blog.

Abraço

Silvares disse...

C'est la nouvelle cuisine, mon ami. Qualquer coisa a meio caminho entre uma obra de arte (plástica) e o temor da fome após a refeição. Sempre me questionei sobre a utilidade de ter frequentado aulas de francês durante 7 anos, entre os meus décimo e décimo sétimo aniversários. Além de ter servido para ler uns quantos livros de histórias em quadrinhos (nisso os francófonos são bestialmente profícuos) deu também para ginasticar as beiçolas e poder ver um ou outro filme sem olhar muito as legendas. Sim, porque para ler o cardápio de um Restaurant só deu uma vez. Primeira que foi, logo última! J'ai pas aimé l'experience.
Hahahahah, isto é mesmo esquisito, recordar a escrita em francês, quero eu dizer.

the dear Zé disse...

La vérité, c'est que la nouvelle cuisine, ce n'est pas ce que mangent les français. Ils aiment bien manger comme tout le monde et ils aiment manger beaucoup, ras le bol, bouffer, comme ils disent. Et boire.

Mas gostei da escrita, muito bem descrita. Coisa de oficina.