Ainda o casamento e as mudanças

Vinte anos. Duas décadas de um casamento feliz e, numa bela segunda-feira chuvosa, fria e com um vento terrível, chego em casa e ouço:
- Tu vais ter que mudar. E muito!
Mudar. E muito. Fácil.
Depois desse tempo todo, nada mais justo que eu mudar. Sou compreensivo. Então, calmamente olhei para aqueles olhos frios e azuis, lindos, e disse, sem relutar:
- Mudar? Fácil. E muito? Mais fácil ainda. A partir de agora, terei nadadeiras e guelras.
Ter nadadeiras seria mudar. Ter guelras seria o muito.  Manter um relacionamento depende só e exclusivamente (isso não é redundância?) de ter boa vontade. Se for preciso mudar, mude-se. Pronto. Resolvido.
Lembrei-me do Namor, o príncipe  submarino. Lembrei, também, claro, do Homem do fundo do Mar, enfim, lembrei do Nemo e do linguado ao molho de camarão. Não, isso não. Na verdade, recordei do tempo em que não era preciso mudar. O mundo fazia isso e nós ficávamos somente olhando, de fora, como não tivéssemos nada a ver com aquilo. (Ou a metro. Ou litro, que seria mais apropriado.)
Bem, chega de baboseiras.
Cheguei em casa na bela segunda-feira, chuvosa, etc, etc, e ouvi que deveria mudar, blá, blá, blá e disse que, então, mudaria tendo guelras e nadadeiras. E, surpreendentemente, fui xingado. Sim, eu, meus instintos, meus desejos, minhas aptidões e minhas guelras e nadadeiras foram sumariamente xingadas. Como se minha transformação fosse pouca, fosse nada.
Toda mudança requer basicamente duas coisas: onde se ficava e onde se ficará. Implica, necessariamente, em dois pontos ou mais. Mudar de algo para algo não existe, da mesma forma como mudar de x para x também não.
Então, depois de vinte anos, se ainda tenho o mesmo nariz e a mesma barriga, só que maiores, e não me transformei em papai noel ou em judeu, é sinal que sou o mesmo. O resto, o que penso, o que digo, o que sinto, o que quero, mudam sempre, sem exceção.
Mudar, então, o quê além de nadadeiras e guelras? Se fui há vinte anos um idiota, serei um ainda hoje? Se fui um gênio, da mesma forma? Mudo, ainda bem, todos os dias. Várias vezes, até. A cada respirada seria exagero, mas, sem dúvida, a cada "pensada" sou outro. Se melhor ou pior, é outra questão. Mudo na mesma rapidez com que mudam os horários ou os desejos.
Mas, se ainda assim devo mudar, então façam-se as guelras. Ou asas. Ou que eu queira que primeiro o bolo cresça para depois dividi-lo. O que falo, na verdade, é que existem princípios, detalhes, que não devem ser transformados. Isso me parece simples, entretanto, não deve ser.
Usei o casamento como exemplo, mas, infelizmente, essa cobrança implacável está em todo lugar, em todos os tempos.
Enfim. com ou sem guelras, com ou sem asas, ou nadadeiras, sou, como diria o "toca Raul", uma metamorfose. Contradizendo, porém, o velho, bom e morto profeta, nada ambulante.
Sou, definitivamente, uma viva metamorfose enraizada. Mesmo com todas as mudanças, sou o mesmo apesar da barriga maior, bem maior, e, caso queiram, com guelras e nadadeiras. Basta esperar crescer.
Não é fácil?

3 comentários:

Letícia Palmeira disse...

Já ouvi essa cobrança diversas vezes. Mude. Seja assim. Faça isso. Eu mudo. Eu obedeço. Mas da minha forma. Mudo de acordo com a minha vontade. Talvez um dia eu consiga agradar a todos.

Adorei, Beto.
Beijo.

Ricardo Valente disse...

O pior de tudo, é essa mania de querer mudar os outros. Se cede, para brincar de ser feliz! É um jogo de desculpas, quando não se perde a identidade.
Bravo!

Cara de 30 disse...

BRI-LHAN-TE.

E só.