O Banheiro do Papa

Uma única taça de um bom cabernet é suficiente para me levar à prisão. Ou eu faço algum acordo mirabolante em casa, ou como um Bacalhau a Gomes de Sá com coca ligth ou ainda, já que uma dose ou um barril causam as mesmas punições, bebo muito mais que o necessário até chegar ao ponto de esquecer que podem existir tais conseqüências. Como o Bacalhau com Coca é improvável e uma ressaca inevitável na outra opção, talvez o acordo: Eu vou dirigindo e a Ângela volta. Simples e perfeito. Obrigações divididas. Este é o tipo de "acordo" que se faz sozinho. Cria-se toda a situação, os ponderamentos e, enfim, a mágica solução. O Bacalhau será bem acompanhado, a vinícola vai continuar vendendo seus belos vinhos, meu fígado não precisará ser transplantado. Ou seja: todos ganham. Só falta avisar a Ângela e, depois de avisá-la, ela concordar.
Pois o Papa, aquele que todos - mesmo os não católicos - gostavam, esteve em 1988 em Melo, cidadezinha uruguaia pouco adiante de Aceguá, e parece que teve um efeito mais devastador que um terremoto e um furacão juntos. Esta visita foi o argumento do excelente El Bãno Del Papa. João Paulo II em uma cidade pobre num lugar onde sequer é passagem para algum grande centro, foi visto como uma oportunidade única de se ganhar algum dinheiro. O carisma do poderoso pontífice certamente levaria - o que seria natural - milhares de pessoas a Melo, e essas pessoas precisariam comer, beber, comprar recordações, estas coisas todas. Bingo! A população trabalhadora começa com a produção de churrasquinhos, lingüiças, pães, batatas e tudo mais que se possa oferecer em barracas para vender aos brasileiros 'encruzeirados'. Beto (César Trancoso), o excepcional protagonista, pensa além: se as pessoas vão comer e beber nas lancherias improvisadas, onde irão fazer aquilo que todos, sem exceção, fazem? Jogada de mestre. Milhares de pessoas, mais de 300 barracas vendendo comida e bebida e somente um lugar de "servicios higiênicos". Impossível não dar certo.
Este é o argumento do filme, em suma.

Claro que no desenrolar da história, praticamente todos os temas que nos atormentam e nos engrandecem são abordados com uma naturalidade espantosa. Trata da contravenção, do crime, da corrupção, do poder - não só econômico - como o burocrático, àquele que permite ao detentor de um cargo humilhar, roubar e ridicularizar algum outro também criminoso, porém sem o suporte estatal - como de felicidade, esperança e amor. Poderia citar todas as cenas do filme que retrata cada um dos exemplos acima e estragar quando vocês forem ver, mas, ao invés disso, vou analisar - e apenas superficialmente -Beto. Frente a um filme destes, apenas alguns conhecimentos de cinema são necessários, como a pipoca doce deve ficar por cima da salgada (pois o contrário uma contamina a outra) e no inverno deve ser Bibs e no verão MM (Bibs derrete nas mãos com o calor) e mais nada. Está tudo pronto, como Beto, para ser degustado. Sorrisos e lágrimas quase se encontram em muitos momentos. Por vezes alguma gargalhada, até. E também um choro mais copioso. Beto, com sua maneira criança, com sua esperança maior que a realidade nos dá um show. Fiquei com uma vontade danada de conhecê-lo, de ser seu amigo. Suas atitudes impulsivas mostram a simplicidade de seu caráter e sua maneira não muito elaborada de ser. Na verdade o sujeito não passa de um contrabandista, mas o carisma da personagem e do ator é tanta que se torce por ele. Mesmo quando se alia ao maior vilão de todos, o "móvel", um policial corrupto, (praticamente um pacto com o demônio), uma espécie de traição a seus amigos, a sua origem, ainda se mantém um carinho especial. Isso tudo só pra dizer que somente ele já vale o filme? Não, mas pra dizer que foi criado um dos mais ricos personagens do cinema. Com uma exuberante carga humana, de uma simplicidade que extrapola o limear do bom senso.
E o que isso tudo tem a ver com o que foi dito acima? Voltamos ao Beto. É estranho, mas talvez se soubéssemos que uma celebridade perdeu tudo o que tinha na vida, iríamos nos sensibilizar. Sei lá, alguém como o Chico Buarque perde toda a fortuna e fica, de uma hora para outra, na miséria, sem nada. Provavelmente faríamos campanhas para garantir o uísque 12 anos dele, (e não entro no mérito do certo ou errado), mas e se um contrabandista, por que foi traído por um comerciante inescrupuloso, perde tudo em minutos? Mesmo que ele tenha família e obrigações como todos, seja uma boa pessoa, isso nos sensibilizaria? Creio que não. Pois imagino uma situação dessas - já que a ajuda não viria de lugar algum - como um salvo-conduto a um acordo espúrio. Algo como, já que vou arriscar e dirigir, vou beber até meu fígado pedir asilo político e danem-se as conseqüências. Pois foi o que Beto fez. Como era inevitável, parou de correr riscos com os policiais, sem saber que seu risco foi ainda maior, com a própria consciência e com a família. Claro que, pobre e sem poder algum, o destino em pouco tempo fez com que pagasse esta dívida. Não vou descrever porque é quase o final do filme. Ele definitivamente não se parece com o Chico. E a vida sabe disso.

A outra análise mostra a genialidade. O óbvio. Aquilo que não há dúvida: cocô. Toda aquela comilança pediria um banheiro. São coisas que andam juntas. Como o Bacalhau e o vinho. Inseparáveis. Claro que a comparação é grotesca, mas justificada. E todos ganhariam: o produtor de lingüiças, o montador de chorizos e ele, Beto, com seu banheiro, com serviços parciais e completos. As coisas geniais sempre são simples. Como combinações culinárias evidentes ou sacadas de que precisamos ir ao banheiro.
E, por fim, com tudo armado e preparado, que venham os dinheiros, em forma de Cruzeiros. Aí entra a terceira e última situação. Não avisaram os brasileiros e, se avisaram, eles não concordaram e, portanto, não foram ver o Papa. Foi um plano de um lado só. E aquela comida toda ficou às moscas e o banheiro limpo. Este final chega a ser doído. Mostra o povo com a esperança se esvaindo por entre os dedos, indo embora pra longe, saindo de onde ela nunca esteve antes. Não cheguei a chorar nesta parte. Minha vontade foi de socar o Papa, apesar de provavelmente ele nunca ter sabido do mal que causou. Morte ao Papa! - pensei. Ele morreu mesmo, e certamente sem nunca recordar que Melo existe. Não faria diferença, também. Creio que todo esse mal seja um pouquinho perdoado por ter permitido que fosse feito uma obra como essa. Certamente um dos melhores filmes já feitos em toda a história do cinema. Pensei em começar dizendo que Hollywood fica logo depois de Aceguá, mas vou terminar dizendo ao contrário disso: fica não. E Melo não é cenário. E o filme não é mentira. E não tem gente explodindo nem corrida de carro. Mas tem gente vivendo, gente de verdade. E corrida de bicicleta. É estranho ter falado de um filme sem falar de cinema. Talvez porque seja mais que uma película e seja um pouco de nós todos.
Sei não, mas acho que a Ângela não vai concordar com minha solução. Mas tenho esperanças, como em Melo.

2 comentários:

cicero disse...

Banheiro do Papa é um filme que me deixou 2 semanas pensando. Eu adoro cinema, mas esse tipo de coisa não ocorre comigo. Quando o Marcão erra um gol na pequena área na frente do goleiro eu passo uma semana pessando, mas cinema não. Um filme leve, mas pesado. Se ri e se chora. Toca fundo. Difícil combinação. Um abraço e parabéns pelo blog, só não manda a merda o Ministro da justiça que pode dar problema.

Beto Canales disse...

Sem problemas, ele não conhece Thihuanaco. E pra não perder a linha: Marcão, vai a merda!