Mistérios 2

Novamente ia caminhando, assim, despretensiosamente, com as mãos no bolso e olhando para cima, escorreguei - desta vez num cocô de cachorro que sujava a calçada - caí e morri. Na hora, sem gemidos ou suspiros. Fiquei ali, estirado como um estorvo, atrapalhando na calçada suja. Como da outra vez , (Veja aqui) escutava e sentia tudo o que passava. Sentei no meio-fio e fiquei me olhando, reparando em como andava envelhecido e mais gordo, e tal, a espera de algum anjo ou coisa que o valha. Pois ele atrasou mas apareceu, e foi direto ao assunto: "Novamente nós dois. É o segundo tombo, mas desta vez, vou avisando, não tem volta". Eu quieto, mais ouvindo os passantes que pararam de passar, e ficaram olhando meu corpo morto e falando, do que o arcanjo. E se ouve de tudo: " Que hora pra morrer, pouco antes do almoço" ou "acho que foi suicídio: o cara se atirou de cabeça no chão" ou ainda "matem o cachorro que fez a sujeira, ele é o culpado". Quando se está morto, a percepção é diferente. Tive vontade de explicar que se houvesse algum culpado, seria o dono do cão, e não o próprio. Salientar para o outro que não escolhi o horário, na verdade, não escolhi nem morrer, mas, sei lá, que me desculpasse mesmo assim pelo incômodo, então, e ainda para o terceiro, que se fosse me suicidar me jogaria de um prédio de 39 andares e não do chão. Mas fiquei quieto. Lembrei do capitalismo, esta coisa genial que quando os banqueiros e especuladores estão ganhando dinheiro, tudo vai bem (exceto a fome no terceiro mundo e essas coisas menores) mas quando vai mal os governos que injetem alguns bilhões de euros para novamente ir bem e começarem a especular como antes. Estes pobres é que tem essa mania de comer, que gente chata. Essas crianças que precisam aprender, gente curiosa. E este povo que precisa sobreviver, gente insistente. É realmente interessante este sistema: defendem a não intervenção do estado na economia, exceto se for pra colocar dinheiro público. Lembrei disso e ao mesmo tempo não parava de ouvir o arcanjo, que continuava numa pregação danada de minhas novas obrigações, das minhas tarefas e - pasmem - metas. Eu tinha metas divinas. Objetivos concretos e palpáveis para alcançar. Pensei em perguntar o que aconteceria se não cumprisse tais metas, mas, novamente, me entreguei aos pensamentos. Lembrei de um candidato a prefeito (não importa a cidade, pois iguais a esse tem em todas elas) que disse que era fácil resolver o problema do trânsito, afinal, bastava construir duas avenidas de várias pistas paralelas com diversos viadutos cortando toda a cidade. Como ninguém, pensou nisso antes? É uma coisa tão simples que chega a assustar. Meus pensamentos se misturavam com as palavras do arcando e dos curiosos em volta do meu corpo, mas, no meio do murmurinho ouço novamente o oficce boy divino falar com a voz mansa e grave: " E entre as metas e funções, você terá que mostrar através de ações espirituais, terá que convencer, terá que ensinar ao povo a sabedoria divina." Parei com tudo: encarei o sujeito alado e perguntei: queres que eu mostre a sabedoria divina aqui, na terra? Neste mesmo lugar dessa politicagem? Neste mesmo mundo infestado por este capitalismo doente? Alguém acreditaria que há sabedoria no caos? Ele consentiu com a cabeça e eu (afinal, como mostrar o que não existe?) bradei: - NEM MORTO! Bingo. Novamente voltei. Dei uma tossida e num salto fiquei em pé. Gritei para que achassem o maldito cachorro para exterminarmos logo com o assassino, afinal, era quase hora do almoço e ninguém é bobo para se suicidar de fome! Cachorro estúpido!

2 comentários:

Robson Schneider disse...

Texto e contexto! aplausos pra ti!

Beto Canales disse...

Obrigado Robson.