Minha ficção e a realidade

Passa rápido por mim, como uma flecha sem veneno, me atravessando e deixando cicatriz. Assim percebo a ficção, a minha particular e especial ficção. Não há mentiras, muito menos verdades, bons ou ruins, certo ou errado. Há o que crio. Meus fantasmas, anjos, minha falta de deuses e minha ânsia em saber. Olho a arte como se eu fosse um adolescente virgem e ela uma mulher nua no cio, a me chamar para o coito, e dizer que me quer, a me excitar. Olho os livros como fossem prazeres para minhas células gustativas, quero comê-los, mordê-los e, alguns, cuspir com cara de nojo. Olho para minhas histórias e me diverto com minhas personagens que criam vida própria e saem do papel, e gritam alto, e gritam comigo. Me xingam como se eu fosse o culpado delas morrerem, adoecerem, amarem, ou qualquer coisa, quando só fui culpado por elas nascerem. Filhos ingratos. Minha ficção torna tudo tão real que me irrito e minha pressão sobe. Preciso do papel ou do editor de texto como preciso do remédio contra hipertensão. Não sou contra nada, mas meus remédios são. Eles são contra a pressão alta. Eles são contra a vida de hoje, portanto. Esta é parte de minha ficção, onde tudo é fácil e confuso, apenas por vezes não suporto (mesmo sendo ela fácil) e compreendo (apesar da confusão). Olho minhas doenças e não são como avisos, mas como parte necessária. A saúde e a doença, tanto faz: as duas são importantes, uma em cada época. Busco nos meus seres, meus filhos que não o meu, minha identidade, mas ela não está com eles e nem na carteira no bolso de trás das calças. Gosto de dizer brim coringa e não jeans, então digo. Poxa, como é fácil: calças de brim coringa, sem minha identidade na carteira no bolso de trás. Já sei onde ela não está, falta pouco agora, na minha ficção.

Faço um esforço enorme e vou para o concreto, o real, e ele passa rápido por mim, me atravessando, como uma flecha com veneno, não deixando somente uma cicatriz. Sabe como é? Quase igual, só que com mentiras, gente ruim e coisas erradas. E os gritos... Enfim, ainda não sei onde está minha identidade e estou mais hipertenso que nunca. E os gritos... Merda, eles ofendem por aqui. Continua a sedução, a fome e a ausência de deuses. É mais feio, também. Talvez, com sorte, o veneno seja alucinógeno.

Brim coringa, brim coringa, brim coringa!


14 comentários:

Adriano Queiroz disse...

Li este texto sem respirar. Como um corte de bisturi.

"Não sou contra nada, mas meus remédios são. Eles são contra a pressão alta. Eles são contra a vida de hoje" amei este trecho.

Desarranjo Sintético disse...

Muito interessante.
As vezes a ficção se mistura com a realidade e aí tudo pode acontecer. Desgovernamo-nos até o precipício.

Abraço.

Fábio.

Felipe Lima disse...

Vou repetir um comentário que fiz num outro blog que tenho visitado (na verdade, é uma confidência sussurrada):Canales, ultimamente eu tenho pensado muito em parar de dissimular a minha loucura. Sabe aquela parte insensata da gente, que pede que nós tomemos banho de chuva nús e digamos 'eu te amo, volta aqui!' sem parar? Pois é. Eu acho que só a loucura vai dar jeito no mundo. E tenho pensado que esperar é desperdício. Grande abraço.

Cara de 30 disse...

Brim coringa, brim coringa, brim coringa...

Adriano Queiroz disse...

Fiquei sabendo pelo seu comentário no blog do Afobório que vc tem um livro no forno.

Quando poderemos comer um pedaço?

Parabéns!

Pareço garoto de comercial de pasta de dente qdo leio estas notícias.

Escritores contemporâneos sejam mais que bem-vindos!

Beto Canales disse...

Oi Adriano.
Obrigado pelos parabéns.
O livro está realmente enfornado. Tive o convite mas quero publicá-lo somente qdo não tiver mais nenhuma dúvida. Ele tem que estar pronto, maturado, assado. Um conselho que Quintana deu ao Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, Charles Kiefer: Escreva bastante e publique pouco.

É mais ou menos por aí...

Anônimo disse...

Vim até aqui para dizer que fico muito feliz de ver todos vocês iniciando a grande viagem literária.
Aguardaremos que o seu livro fique no ponto, para que possamos conhecê-lo.
Mas que legal foi ver você escrevendo brim coringa. Fazia horas que não ouvia mais esse termo. Aí lembrei das alpargatas, dos guides (hoje tênis)e tantas outras palavras que ficaram pelo caminho.
Bom vê-las de volta.
abraço

Anônimo disse...

olá.

ah meu garoto, acho que já sou suspeito para te elogiar, mesmo assim quero dizer-te que teu texto é como sempre, tem um nível técnico muito grande.

agora o brim coringa me levou de volta a infância, hahaha.

sorte e luz, porque enquanto você escreve o mundo responde.

Robson Schneider disse...

"Me xingam como se eu fosse o culpado delas morrerem, adoecerem, amarem, ou qualquer coisa, quando só fui culpado por elas nascerem. Filhos ingratos." isso foi genial!
Beto acho que esse foi o texto mais... como direi... pessoal?! talvez isso... ou melhor, onde te percebi vulnerável de certa forma, e preciso confessar que foi o texto que mais gostei dos que li até hoje.
Bravíssimo!!!

Anônimo disse...

Tenho acompanhado e adorado!!!!

Parabéns!

Bjs

Carmem

Jana Lauxen disse...

Eu sinto parecido.
Acho mesmo que criar ficções é, de alguma forma, brincar de Deus.
E se quer saber, eu gosto de brincar de Deus.
Hihihi.

Abraços e nos avise sobre o livro, certo?

Anônimo disse...

MUito bom seu blog.

Beijos.

Anônimo disse...

Blog nota 10 !!!!!!!!!!!

Luiz Gonzaga B. Jr. disse...

Oba! De Cruz Alta só podem vir coisas boas. Numa edição mais recente de "Clarissa" o Érico, analisando posteriormente o livro que havia já escrito há alguns anos, fez comentários como o uso excessivo de palavras grandes que há em Clarissa. Tomei isso como um conselho. Mas,infelizmente, nunca tive o prazer de conhece-lo pessoalmente. Obrigado e passe de vez em quando.