Pequenas imensas agressões

Calma! Coisa rara para uma pessoa como eu. Não sou assim, não a tenho. Sou elétrico, penso dúzias de coisas ao mesmo tempo, faço diversas coisas juntas e olho aquilo que não se vê, pelo menos normalmente. Sinto-me incomodado, atingido, esfaqueado pelo que vem de fora, pelas notícias todas, por ataques terroristas, por ataques não terroristas, por crianças que voam de janelas altas arremessadas pelos pais, por dores, enchentes, doenças, mazelas. Soco a mesa, levanto a voz e tudo mais que possa agredir eu faço, tentando mostrar minha discordância, repugnância - desculpem a rima, mas ela foi necessária - em relação a tudo isso. Não gosto de conformismo.
Pois conheci a representação em 3d do que é calmaria. O ato, o conjunto de coisas ou fatos que exemplificam a calma: o voar do condor. Sinto-me um privilegiado com isso. O lugar chama-se vale do Colca, e lá, em um cânion de mais de 3000 metros de profundidade, vê-se estes animais pairando pelo ar. É abstrato. É ficção. É silencioso. É calmo. É lindo.
Eles desfilam sem bater as asas por muitos minutos, cortando o ar com consentimento. É tudo planejado e ensaiado. Não há nada mais tranqüilo, mais sereno. Eles vão, vem... a única coisa que realmente passa nesse lugar é o tempo, e mesmo assim devagar, de uma forma sublime, como se fosse amigo e não trouxesse rugas, somente sabedoria. É calmo, tudo muito calmo, tudo em paz, com o belo vôo sobre o cânion tendo ao fundo algumas montanhas com neve eterna.
Quando a coisa aperta e minha pressão fica adulta, deixando de lado números de adolescente e criança, quatorze por sete, por exemplo, procuro lembrar deles voando e fico calmo. Quase sempre funciona. Mas, como tudo, há exceção: LUZ. É simples. Estou eu indo calmamente em companhia de Amy Winehouse a 90 kms/hora onde o limite era 80 e um carro a uns 200 metros atrás faz sinal de luz. Condor. Chega mais perto e faz novamente. Bem, cheguei a imaginar que o cara estava com a mãe recém esfaqueada no banco ao lado indo direto ao hospital. Me dei conta que estávamos saindo da cidade. Hipótese pouco provável a da mãe, portanto. Outro sinal, desta vez duas vezes. Por um instante pensei em quais motivos eu deveria me arriscar e jogar meu carro no acostamento e permitir que passasse, descumprindo em muito o limite de velocidade permitido. Não me veio nenhum motivo. Condor. Condor. O desfecho: a alguns metros de mim, literalmente "colado", sinais ininterruptos, asquerosos, agressivos. Foi um tiro na cabeça do meu condor. Quando ele finalmente passou, ainda em uma curva e de uma maneira completamente insegura, consegui ver tratar-se de um menino, provavelmente há pouco tempo dirigindo. Sabe que isso me conteve? Com o condor morto, eu iria mostrar ao sujeito o que é um palavrão, ou como se faz sinal de luz para verdadeiramente irritar alguém, ou entregá-lo à polícia mais próxima. Mas não fiz nada disso. Ressuscitei meu pássaro e desisti. Um sujeito daqueles não tem cura nem espaço. Não será a vida que o ensinará como é dura, mas a morte. Um menino agindo de uma forma estúpida como aquela é grave.
As coisas estão perigosas. Não há nada pequeno, tudo está perto da tragédia. Se não agirmos, se cada um não reviver seus próprios pássaros da paz, o futuro não será nada amigável. Tenho um filho maravilhoso com idade da pressão mais baixa. Não posso deixar que um sinal de luz ou um xingamento, ou um fura-fila, ou qualquer coisa dessas pragas modernas matem meu condor. A vontade deve ficar ao lado, sentada, esperando que minha calma e tolerância continuem voando livre. Não vou falar da vontade que tive e tenho com coisas assim, pois falaria em sangue.
Por sinal, muitas vidas ao meu condor, no seu majestoso deslizar sobre o precipício. Vou precisar de todas elas.


18 comentários:

Anônimo disse...

Beto, teu texto é um poema.
Ora, calma = condor voando.
Uma figura exótica, linda. Eu adorei.
um beijo

Letícia disse...

Me sinto incomodada até quando vejo cachorro perdido. É um fato. E quando já seguia a viagem também, seu texto pára. E vem a raiva que o mundo de fora nos causa. E é como um pai falando ao seu filho sobre os caminhos e os perigos. Vai ver crescer demais seja perigoso também. E que exista sempre o lugar calmo e o condor.

"As coisas estão perigosas. Não há nada pequeno, tudo está perto da tragédia."

(Beto Canales)

É isso.

Bjs, Beto.

Anônimo disse...

beto, acho que o mundo anda meio parecido com os sapos, cheio de unhas, mas é assim mesmo meu jovem, o jeito é respirar fundo e tentar fazer o melhor que podemos.


ótimo texto meu jovem.



sorte e luz.

Desarranjo Sintético disse...

Gostei do texto. Acho que hoje em dia todos nós precisamo ter sobrecargas de vida para nossos condores interiores. É uma necessidade, uma obrigação quase. O mundo anda na beira dos canyons de 3000 metros, o jeito é observar o condor...senão só teríamos mais dor.

Abração.
Fábio.

Cara de 30 disse...

Amigo, meu condor já virou carniça para outros... Morreu faz tempo... Infelizmente.

Germano Viana Xavier disse...

Texto traiçoeiro. Começa calmo, depois explode. Uma reflexão necessária em dias de fúria humana-desumana.

Um abraço, Beto.
Continuemos...

Anônimo disse...

hahahaha, beto, beto, veja só que caso curioso, ultimamente ando sem muito tempo para ler, mesmo porque a cada dia que passa gosto mais dessa coisa de blog, então ando com os livros meio de lado, hehe, ainda hoje estava de bem com a inspiração e resolvi escrever, pensei em uma estória, mas estava a procurar um figura para complementar o enredo, então pensei no CONDOR, fiz o texto e postei e tal, depois falando com a jana fiquei a pensar, de onde tirei essa idéia? sem resposta esqueci o assunto, então como o ócio veio a mim essa tarde, estava eu passando por meus blogues preferidos e quando chego aqui, MATEI A CHARADA DO CONDOR, hahahaha, você com seus textos heim, está a "impestar" meus pensamentos - no bom sentido é claro. então tomei a liberdade de comentar isso aqui, hahahaha, e olha, deus me livre, mas depois daquele texto dando cinema para as pessoas, estou quase e me inspirar no cinema, hahahaha.

um abraço, sorte e luz.

Beto Canales disse...

Cavanhas, sabe que isso é bom?
Aproveitar o que tem por perto seja talvez uma grande sacada.

Abração

Adriano Queiroz disse...

Foi feliz em recuperar esta imagem do condor.

Abraços.

Jana Lauxen disse...

O meu Condor vem e vai.
Quando ele passa sobre a minha cabeça, tenho vontade de agarrá-lo e colocá-lo em uma gaiola, para ele não sair mais dali.
Mas você sabe como eles são.
Do jeito que vem, vão, e lá estou eu novamente, me consumindo na minha própria indignação.
Condor em cativeiro também não adianta nada.

Abraços Beto, um grande texto.
:)

Jana Lauxen disse...

Aliás... E o nosso time heim?
Ai, ai, ainda morro de orgulho.

:)

Anônimo disse...

Ôôô...seu Beto, q bom de ler.
"Não há nada pequeno, tudo está perto de uma tragédia". Vou postar no meu varal!
Bj!

Anônimo disse...

...zeus.
Ainda ñ aprendi entrar aqui.

Robson Schneider disse...

O meu virou escova de dentes... to mais pra fênix...

Daisy Serena disse...

Belo texto, belo mesmo!!!!!
Temos que criar nossos Condors com todo zelo, dar-lhes o melhor alimento, o teto mais aconchegante, o calor, o bem querer, para que este não nos falte, não suma num piscar!
:)

Beijosss

Vâmvú disse...

Lindo texto, Beto. Concordo plenamente com vc, temos que reviver nossos próprios pássaros da paz. Longa vida a nossos Condores...
Abração

Anônimo disse...

Oi Beto
Um assunto que me é muito proximo, não o condor mas a paz do voo. Tome a minha proxima sugestao muito a serio, voce e todos os amigos que comentaram este deslumbrante texto da nossa vida, exprimentem voo planado, vão a um centro de voo num aerodromo perto de voces e comprem 15 minutos ou 30 minutos de voo planado, sim aquela coisa sem motor... amigos é a sensação mais transcendente que vivi ate hoje, sexo apaixonado esta la perto mas olhem que voo planado vai fazer subir o vosso ranking.
A imagem do condor é bem, voar assim e so sentirmos o vento o ar e o nosso ser, a extase nesse voo desliga-nos o mundo, desliga-nos o medo o tempo, a vida, sim desliga-nos os filhos os pais os maridos... por minutos ficamos sos com o ar, ficamos longe do bom do mal. São minutos de puro existir, são instantes de sonho que podemos revisitar sempre que um palhaço com pressa de voltar ao circo nos empurra fora de estrada. E muito bom voar, e optimo poder recordar o voo.
Sejam Condores meus amigos, fiquem bem, aqui onde vivo nao existem Condores, mas voo com as minhas queridas gaivotas, voo sem movimento, beijando o vento salpicado pelo mar.
Beijos e abraços

Felipe Lima disse...

alguns nos chamariam de pessimistas Canales, por perceber que o mundo acabará. Você falou em sangue mas eu só consigo sentir uma consternação profunda, muito dolorosa. condor.