Sobre hoje

Pensei em escrever sobre o passado. Depois, sobre o futuro. Sou bom para qualquer um deles. Só deixo a desejar com o presente. É um raciocínio bastante simples. Vejam: com o que já aconteceu, posso usar as palavras mais convenientes, como melhor me ocorrerem, como eu quiser, afinal. Posso maquiar, colorir e até mudar. Tudo depende somente da minha vontade. É um poder e tanto. Às vezes, quando é dito que o passado pode ser mudado, as pessoas estranham, desconfiam, mas é exatamente isso. Na verdade, algo só pode ser modificado se já aconteceu. Se mudar antes de se tornar real, já nascerá diferente. Qualquer coisa que já tenha ocorrido pode ser mostrado de outra forma. Para isso existe o maior patrimônio circunstancial da humanidade, a mentira. O passado depende dela para ser bom ou ruim, para ser lembrado ou esquecido. Ele não é uma mentira, mas nós o criamos conforme nossas necessidades, nossos desejos. Tão servil, sempre lá, quieto, esperando para ser manipulado, para ser construído ou desconstruído, não interessa. Um fiel aliado.
O futuro, esse então, uma verdadeira piada. Se é fácil brincar de deus com o passado, com o seu (poderia chamá-lo de contrário?) contrário, mais fácil ainda. Nele sou, somos - "vá lá" -, inteligentes, ricos, bonitos e tudo mais. Só não ganhamos na loteria por que o futuro ainda não chegou, afinal, isto é certo, não é? Só não temos mais conhecimento pelo mesmo motivo, mas, em breve, depois de lermos tudo que precisamos e descobrirmos um mundo novo e inteiro pela frente, tudo será diferente. Quando ele chegar, seremos outros. Melhores, muito melhores. Basicamente basta esperarmos. Ele trará beleza, riqueza e sabedoria. Foi tudo dito no plural propositalmente, ou alguém será estúpido, miserável ou feio no futuro? Não, definitivamente não. Seremos todos verdadeiros heróis, exemplos para o resto da humanidade. E não falta muito, pois ele está logo ali, depois da esquina, essa primeira, ao alcance dos olhos. Chego a sentir o cheiro, o gosto. Chego a vê-lo, quase toco nele, macio e sedoso, jovem e cheio de vida.
Vou resumir. No passado, fui encantador, esforçado, aguerrido, honesto e todos adjetivos que sugiram força e persistência. Uma boa pessoa, afinal. Se não gostaram, posso ter sido um mártir, um cara engraçado ou um sujeito altruísta. Qualquer coisa, tanto faz. Meu passado, escolham vocês. Mas o futuro não, ele me pertence. Este eu escolho e não inventarei nada, serei convencional: rico, bonito e culto. Viram que fácil? Tudo resolvido, tudo enquadrado. Gosto disso.
E o presente? Prefiro não falar deste chato. Sujeito insuportável, triste, podre, desgraçado. Mas - ainda bem - com vida curta, afinal, a esquina está logo adiante. E aí - áh, me aguardem - "adiós tristeza, adiós coisas ruins". O futuro será só alegria e, quando chegar, este caos de hoje terá passado, então eu o transformarei em, sei lá, aprendizado, talvez.
Nossa! Sou meu deus! Sou deus!


9 comentários:

Letícia disse...

Hey,

Cheguei e trouxe maionese. =)

Caro escritor,

Esse texto é um rompante de imaginação bem servida de inteligência e domínio da língua. Simplesmente adorei. Não como se adora um cachorro bonitinho, mas como se adora deus. Você veio com uma teoria perfeita que é o espelho do mundo em que vivemos. Lembrei das promessas feitas quando o ano termina. Todo mundo será sempre feliz. Vai ver, somos todos "Meu Deus".

Só digo que não quero perder essa vida sem ler teu livro.

Gosto demais do que você escreve, Beto.

Beijos, amigo.

Biba disse...

Beto, você é demais! Se somos Deus então é isso que você colocou: transformação. Seu texto fala disso e a vida é pura transformação mesmo. E nós podemos!!

Beijos
Carpe Diem!!

Ricardo Valente disse...

Que merda, né?
Não tenho dúvida que tu és Deus e podes achar uma boa desculpa para tudo, mas seja antes o Betão e se deixe ajudar pelo homem de branco e pés no chão.
Abraço e força!

Sueli Maia (Mai) disse...

Simplesmente phodástico!
Beijos e reverência.

Anônimo disse...

somos deuses em nosso autismo concreto e real, tocamos-o e vivemos-o como quem pega onibus lotado as seis da tarde, mas os outros milhares de olhos do lado de fora, o que vêem além do próprio autismo[ ou endeusamento].
somos deuses sem seguidores,rs.

adoro tudo que escreve beto.
beijao

Denise Ravizzoni disse...

Pois, piscou, o futuro já é passado... Tempo é uma bosta.

Leandro Noronha da Fonseca disse...

le temps detruit tout.

Denise Ravizzoni disse...

Sim sim, meu querido Capitu existencialista.

Silvares disse...

Alguém disse que para se mentir é essencial ter uma excelente memória. Ultimamente tenho tentado recordar alguns episódios do meu passado. Sabe uma coisa? O meu Deus caíu do altar. Não se partiu. Caiu, apenas.