Inveja

Vinha caminhando por uma rua movimentada quando o avistei. Ele olhou-me nos olhos como uma águia mira a ratazana prestes a virar almoço. Tentei desviar, dei alguns passos para o lado esquerdo e ele fez o mesmo. Subitamente fui para o direito. Ele também. Algumas pessoas passavam apressadas entre nós, mas eu não saía de sua visão de rapina. Ficávamos cada vez mais próximos, já estávamos a poucos metros quando tentei um último e desesperado recurso: abaixei-me para atar os cadarços. Estava de mocassim. Levantei sabendo o inevitável. Fui erguendo o corpo, desdobrando os joelhos, respirando fundo, já pensando no que diria: não! Mil vezes não. Quando fiquei finalmente ereto e pronto para responder com meu planejado "não" contundente que dirimiria qualquer pretensão, ouvi:
- Eu sei o que você precisa.
Ele sabia o que eu preciso. Décadas e décadas de vida e eu nunca consegui saber isso, e aquele homem, de terno barato, gravata rosa, cabelos com gel penteados para o lado, sabia. Como poderia dizer não a uma pessoa dessas? Impossível. Engoli meu ensaio todo, digeri meu "plano" e, ainda relutando, perguntei:
- E o que eu preciso?
Seus olhos brilharam. Ele havia vencido o primeiro "round". Eu estava a alguns segundos do que poderia ser a revelação mais fantástica de minha vida, seria a redenção, o nirvana. Cheguei a esboçar um sorriso de felicidade pela descoberta iminente quando ouvi:
- Aparelho de tirar pelos do nariz!
O quê? Pelos no nariz? E ele viu com seus olhos de águia à distância? Espelho! Preciso de um espelho, pensei rápido. Meu mundo caiu. Desabou. Não sou vaidoso, nem nunca fui, mas isso era demais. Eu deveria estar parecendo um símio. Claro, tinha mesmo notado que ultimamente as pessoas ficavam me observando. E rindo. Pudera, eu era um primata cheio de pelos no nariz.
- Eu tenho espelhos à venda também. E de aumento. Veja esse aqui.
O homem era mesmo um sábio. Tinha lido até meus pensamentos. Peguei o espelhinho e - nossa! - pelos enormes. Eu realmente precisava do aparelho, e urgente. Olhei mais e mais e tudo estava enorme. Olhos, nariz... e cravos. Centenas. Daqueles que ficam um pontinho preto que quando apertamos sai uma tripinha de (argh) pus, como uma serpente encantada sai de um cesto, sinuosa e insinuante. Eu havia virado um macaco peludo cheio de pus em pleno rosto. Estava perdido, desesperado, quando novamente ouvi:
- Este creme é infalível, é só passar depois do banho e em poucos dias seu problema estará resolvido.
Pronto. Tudo resolvido. Depois do banho. Mais simples impossível. Fechado. Nem vou pechinchar, já estou ganhando. Pergunto quanto e ele prontamente responde:
- Como o senhor tem que levar também o creme removedor de creme, o que resultará em quatro produtos, escolha mais alguma coisa, porque para cinco tem um desconto de vinte por cento.
Sinceramente? Sou a pessoa mais feliz e sortuda do mundo. Vinte por cento. Sabem o que é isso? Um quinto, ou seja, um gigantesco, um faraônico desconto. Eu realmente caí nas graças daquele bom homem. E ainda me chamou de senhor. Tentei abraçá-lo em agradecimento. Ele, modesto, não aceitou e despediu-se com um sorriso, colocando vários reais no bolso.
Chegando em casa, lembrei de uma cena que aconteceu na Bienal do Rio. Uma moça pegou meu livro, olhou a capa carinhosamente. Leu a orelha, os agradecimentos, levantou os olhos em minha direção e sorriu. Leu mais alguns trechos. Fez sinal de aprovação com a cabeça, por duas vezes, olhou-me mais algumas - eu sorri também - e ficou por vários instantes esperando meu contato. E assim terminou a história. Não fui falar com ela, dizer algo sobre o livro. Perguntar o que ela tinha achado. Dizer olá. Qualquer coisa. Fiquei parado, estático, com cara de maluco (macaco doido cabeludo cheio de pus no rosto) e não fui capaz de ao menos ser agradável com a ex-futura leitora.
Conclusão de tudo isso, ainda mais agora olhando meu aparelho de tirar pelos do nariz, meu espelho que aumenta, o creme contra acne, o creme de tirar creme e o ventiladorzinho à pilha, meu quinto produto, que não faz vento e ainda não descobri para que serve: não sei vender. Sou o pior vendedor do mundo.
Em compensação, um ótimo comprador.
Que inveja do sábio de gravata rosa.
E, pôxa, olhando bem, nem tenho pelos no nariz... Mas que foi uma pechincha, foi. Sem dúvida! E ainda pode ser útil. Sei lá. O Toni Ramos vem me visitar, por exemplo...




5 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom. Parabéns. haha
João Inácio

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Será que isso aconteceu mesmo? Beto, está tão bom que acho que é um conto, imaginaste tudo isso. Vida real, vida imaginada, "esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com fatos reais é pura coincidência", tudo se mistura, não é? Como dizes que é verdade, eu acredito e acredite, gostei MUITO.
Karen Scopel

Anônimo disse...
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Ricardo Valente disse...

Putz, até fiquei com nojo (acabei se tomar um suco de laranja, pô!)
hehehe Chegou o esperado... depois comento!
Abraço!