Aquele que tudo entende


Era uma rua calma, destas cheias de árvores, com calçadas um tanto destruídas e irregulares, em razão das raízes que insistiam em serpentear, com muitos cocôs de cachorros e pouco movimento. Caminhava com calma olhando para o chão, afinal, uma tropeçada ou - ainda pior - uma deslizada, não estavam em meus planos. Toda minha concentração dedicada a evitar o que acontecia com frequência, tanto que juntava uma meninada frente a um casarão abandonado, na expectativa de rirem dos tombos ou dos sapatos sujos. Eu, até por conhecer a fama da rua, que de general "sei lá o que", passou a ser conhecida como rua da Pegadinha, não desviava os olhos dos perigos e seguia como se pulasse amarelinha. Ergui a cabeça uma única vez quando notei, logo em frente, uma mulher, de seus 70 anos, talvez, que falava com um cão, enquanto ele fornecia mais material fétido para o lugar.
Pois este pequeno instante em que não olhava para baixo, foi suficiente para eu ouvir da garbosa senhora:
- Posso saber porque o senhor está me olhando?
Como nossa mente é rápida! Em segundos, já havia formulado algumas respostas, como "porque lembrei da minha avó", ou "pensei que fosse a Hebe Camargo" ou ainda "olhei por puro interesse sexual" mas, como aprendi a nunca mentir, respondi:
- Pode saber sim. Olhei porque a senhora conversava com o cachorro.
- Áh, isso - respondeu ela resignada - É que ele entende tudo.
Baixei novamente a cabeça e segui adiante. (Desvia cocô, desvia raíz.) Já não olhava mais nada. Tentava achar minha concentração que ficou em algum lugar do passado. Passado recente. Mais dois passos e a achei: ele entende tudo? Tudo? Mais alguns metros olhando para o nada, pensando no cachorro que tudo entendia e, claro, o tropeço. Cambaleei um pouco, com passos mais largos que minhas pernas, e fui ao chão, estendido como uma carne flácida, morta e indefesa. O comprimento da rua é de cerca de 80 metros, não mais que isso. Caí bem no final - adivinhem onde? - frente ao casarão abandonado, repleto de adolescentes ávidos por gargalhadas. E elas vieram. Sonoras e babadas. Intermináveis. Principalmente quando ergui minhas mãos e elas estavam, digamos, "batizadas" daquele marrom escuro e confuso, além de fedorento. Ecoava em minha cabeça aquele som irônico mas não mudava meu interesse: tudo! Ele entende tudo. Será?
Parei finalmente de olhar para os meus dedos melados e, em uma virada de 180º, passando sem tomar conhecimento dos jovens, encarei novamente a mulher, mais precisamente aquele que tudo entende. Levantei com calma e fui intrépido, como um zumbi, até eles.
- Como é seu nome?
- Norminha - ela respondeu.
- Não estou falando contigo - bradei com olhar furioso. E fiquei a espera da resposta. Coloquei a mão no queixo, senti o cheiro quente e ardido, percebi o úmido e pegajoso em minha pele, mas não desisti:
- Nome? Diga logo o nome. - A mulher começou a ficar incomodada. Percebendo a agitação, resolvi ser mais incisivo ainda:
- Você não entende tudo? Pois tenho quero saber como se chama. Vamos, o nome! - E ele enfim respondeu:
- Alf... - Passei a mão na cabeça, recebi em troca um alegre abano de rabo e, calmamente, falei:
- Alf, meu querido, realmente você entende. Então, deixa eu lhe explicar algo, já que a Norminha parece não ter a mesma percepção. Como não há privadas para cães, as pessoas que andam com seus animais na rua têm que recolher os cocôs, porque, se não fizerem isso, outras pessoas podem literalmente ficar, pisar, cair na merda. Como nem sempre teremos um presidente disposto a nos tirar dela, ainda mais literalmente, o correto é não deixar a sujeira. Você entende, Alf? - ele balançou positivamente a cabeça e a Norminha, olhando o bolo circular deixado há pouco, balançou negativamente.
Dei tchau pro Alf e apertei com vontade a mão da Norminha, além de encostar meu queixo em sua bochecha para dar três beijinhos.
Sabe que os meninos não riram mais?
E creio que só o Alf entendeu.




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