Vidas que se cruzam


Alguns mestres da literatura afirmam que se um livro está bem feito, a ordem dos acontecimentos pouco importa. Algo como o meio da história iniciar a leitura e o final ficar na metade da obra. Essa "desordem" pode trazer benefícios muito interessantes. Para que isso seja possível, absolutamente tudo - personagem, estrutura, conflito - tem que estar bem feito. Não é coisa fácil, muito menos para principiantes. Claro que para o cinema a história muda um pouco. Começa que um filme é feito em equipe. Nada de solidão frente a uma tela nervosa e o silêncio como trilha sonora. A rigor, porém, a assinatura, o detalhe, o sinal que marcará a obra pertence ao diretor, portanto, aos fatos.
No filme de estreia, Vidas que se cruzam, o mexicano Guillermo Arriaga (excelente roteirista)  não deixou por menos e fez algo parecido com a sugestão dos craques dos romances. O trabalho parece de alguém com muita experiência, tal é a forma madura e bela como foi apresentado.
Dois detalhes são excepcionais e importantíssimos para o conjunto. As mudanças de cena - feitas com uma sutileza e habilidade que encantam - saltam aos olhos pela beleza. A passagem é suave e discreta, permitindo a continuidade da ação de uma forma peculiar e espetacular. A técnica foi extremamente importante para fazer a ligação, a costura, entre tudo. O espectador vai acompanhando diversos fragmentos que compõem várias pequenas histórias completas, com início/meio/fim, e, somente mais tarde, perto do final, é que percebe serem todas elas partes de um único argumento. A outra jogada de mestre é a localização no tempo/espaço. Perfeita. Ela não permite que se observe diferenças substanciais entre as histórias, o que favorece a maneira bastante inovadora de mostrar os fatos, feito com uma fórmula nada convencional. Não confunda, porém, com o já batido final no começo. Não se trata disso. Guillermo conta uma história retilínea, inclusive nas questões temporais, de um jeito bonito e surpreendente, permitindo e estimulando o erro. O nosso erro, como espectador, valorizando ainda mais o trabalho.
Outros pontos positivos são a fotografia e os diálogos. Também a escolha dos lugares para as filmagens merece aplausos - um permanentemente chuvoso e outro com um eterno "amarelo do sol", um deserto, na verdade - "desencontrando" as diferenças das vidas e das pessoas, tornando o inusitado óbvio. Depois de revelado, é claro.
Além disso, a trilha também ajuda a tornar o filme quase completo. Alguns silêncios, extremamente convincentes e necessários, se encaixam com precisão. O elenco, com a Kim Basinger, um tanto envelhecida mais ainda bela e competente, e a lindíssima Charlize Theron, completam a obra.
Enfim, procuro não contar o que deve ser visto. Fosse um livro, a maneira absolutamente inovadora como foi composto chamaria a atenção dos críticos e teria destaque nas prateleiras. Como é um filme, e por algum erro de estratégia lançado por esses dias, ficou escondido atrás da Alice e do Homem de Ferro. Ainda está em cartaz, poucas salas, é verdade, mas vale o investimento do ingresso. E da pipoca. Das grandes.
E até de um táxi, se for preciso. Não perca!
Bom cinema!



2 comentários:

the dear Zé disse...

Não vi. Não sei se estreou por cá. É curioso como, falando (mais ou menos) a mesma língua, os títulos dos filmes recebem traduções diferentes. Por vezes irreconhecíveis. Já tive conversas sobre cinema com amigos dessa margem do oceano e, às tantas, para encontramos uma sintonia, tentamos lembrar dos nomes originais dos filmes. Resultou, até que alguém começou a falar do cinema japonês...

Abraço

Silvares disse...

Vamos ver...